12 de maio de 2010

As incríveis memórias de Samael Duncan - Cila, Parte III

Continuando com a pausa nas dicas para escritores, segue a terceira parte do capítulo 2 do livro em que estou trabalhando. Estou publicando apenas para seguir o prometido. Semana difícil, depois falamos disso.
Cila – este era o nome dela – era uma velha senhora que vivia naquela casa abandonada. Quando entrei no primeiro andar da casa, naquele primeiro dia, não pude deixar de me espantar com a sua figura impressionante. Os cabelos, embora totalmente brancos, eram incrivelmente lisos e brilhantes mesmo à luz da vela, penteados com algum cuidado em uma grande trança que caía sobre seu ombro esquerdo. O rosto, que deveria ter sido incrivelmente belo, deixara a decadência da velhice amarelar não apenas a pele, mas também os olhos, embora as íris azuis ainda fossem claras e vivazes, e pareciam ter um estranho movimento que recordava dos mares da minha infância na Escócia. Suas roupas, rotas, deixavam denotar um grande e antigo luxo, derrotado, como ela, pelo tempo. Mas o que realmente deixou-me espantado foi como a encontrei: sentada por detrás de uma mesa, com a água pouco acima da cintura e um grande livro iluminado por um toco de vela assentado em um pequeno candelabro enferrujado, ela me olhava como se eu fosse um intruso em sua pequena mansão, um visitante incômodo que estava ali apenas para perturbar a sua tranqüilidade. Totalmente sem jeito pelo olhar que parecia me despir, não tive nem mesmo coragem de perguntar o que a velha senhora fazia dentro d’água, apenas gaguejei um cumprimento quase desconexo. Se bem me lembro, algo como: “Olá... Meu nome é Samael... Eu... Desculpe, eu não queria incomodar!”. A gargalhada da estranha mulher arrepiou-me não por ter nada de assustador, mas justamente pelo contrário: todo meu corpo sentiu a força de seu divertimento com meu embaraço, como se fosse eu, e não ela, quem estivesse a rir. Uma onda de tranqüilidade e felicidade me inundou. “Olá, Samael! Venha, aproxime-se! Você não está incomodando, oh não, Deus sabe que não! Meu nome é Cila!” Tentei parecer natural enquanto caminhava com água até a cintura, enquanto ela continuava falando com aquela voz que tinha estranhos efeitos sobre mim. Lembro exatamente de suas palavras: “Você me lembra meu querido e falecido marido, Fabrício! Como ele era sem jeito, às vezes!”. Sem saber se me ofendia ou me divertia, sentei em uma das cadeiras submersas, tentando evitar uma careta enquanto a água fria subia pela minha barriga. Cila riu novamente, e desta vez não consegui resistir, e minha risada se uniu à sua. A partir daquele momento, nos tornamos amigos. Não caberia aqui listar todos os diálogos que tive com Cila, onde usualmente eu contava fatos do cotidiano, as novidades comentadas na feira, as maravilhas que eu parecia descobrir nos pequenos detalhes do mundo a cada dia; que ela entremeava com comentários que usualmente davam um brilho extra às minhas observações, ou com perguntas sobre pequenos detalhes que, muitas vezes, haviam me passado despercebidos. Sei apenas que simplesmente sua voz dava-me um prazer indizível, eu me sentia como se estivesse novamente apaixonado; como se, além de Cila, minha doce e saudosa Caterina também estivesse ali, rindo, conversando e se divertindo conosco. Durante mais de um ano adiei minha saída de Veneza, a pretexto de estar procurando por novos negócios, somente para estar ali com ela, para tentar entender um pouco mais daquela senhora que efetivamente vivia no primeiro e alagado andar de um prédio abandonado. Mas quase nunca falávamos sobre ela, que sempre conseguia desviar-se graciosamente de quaisquer perguntas sobre seu passado. Chegou o dia, porém, que não pude mais ficar por ali. Além dos afazeres de meu emprego de caixeiro viajante, meu sangue aventureiro começava a se incomodar por estar tanto tempo em um mesmo lugar. No dia da despedida, cheguei à casa de Cila com o coração pesado. Percebendo rapidamente meu estado de espírito, Cila segurou minha mão e olhou nos meus olhos. Com palavras que eu não saberia reproduzir, pois tinham mais sentimentos que sons, ela me disse que nunca poderia agradecer o suficiente pela felicidade que eu havia lhe proporcionado no último ano. E pediu que, se um dia eu retornasse a Veneza, não esquecesse de visitá-la. Apertei sua mão – cuja pele era extremamente macia, apesar da idade – e retribui o olhar. Neste momento, percebendo que o momento de intimidade abria uma porta, perguntei a ela, diretamente, por que vivia ali. Afinal, eu sabia que ela gostava do mundo “lá fora”. Cila soltou minha mão, como que ofendida por eu tentar invadir sua privacidade, mas com um suspiro sua expressão acabou por suavizar. Com seu jeito de escolher as palavras sempre perfeitas, ela me disse que há muito, muito tempo atrás, fizera uma promessa a Fabrício, seu falecido marido, que a obrigou a viver longe de seu povo. E disse-me que seria muito complicado explicar, mas que tampouco podia viver entre o povo de Veneza. Desta forma, só lhe restava ficar ali, naquele resto de casa, onde um dia havia vivido feliz com o marido. Ficamos muito tempo nos olhando sem saber como continuar aquela conversa. Finalmente, depois de não sei quantos intermináveis segundos em que Cila me suplicava com seu olhar que a tirasse da situação sem saída, suspirei, mordi os lábios e consegui falar alguma coisa: “Cila... Faz muito tempo que seu marido se foi?” Seus olhos se encheram de lágrimas quando disse que sim, fazia muito, muito tempo. “Desde o fim da ´Sereníssima´” foi o que ela falou, e só anos depois, ao estudar a história de Veneza, é que fui descobrir quanto tempo isso significava. Ela suspirou, baixou o rosto para o lado e viu seu reflexo nas águas, emoldurado pelos cabelos que, soltos, afundavam suas pontas na água escura do rio. “Cila,” - eu tive coragem de falar, algum tempo depois - “não sei exatamente qual foi sua promessa, mas se você a cumpriu durante toda a vida dele, deve ter sido suficiente. Precisa ter sido o suficiente. Tenho certeza que Fabrício, qualquer que tenha sido esta promessa, não gostaria de vê-la aqui, neste lugar, vivendo deste jeito”. Ela ainda olhava, entretida, o seu reflexo. Suas mãos puxaram parte do cabelo para trás, derrubando grossos fios de água pela parte seca de seu vestido e sobre a mesa. Parecendo delirar com seu reflexo, ela concordava comigo, com a voz soando como se estivesse longe dali. “É vero... Fabrício me amava! Ele não gostaria de me ver assim... Pareço uma velha! Esta promessa está me matando aos poucos!” Eu iria sorrir de seus delírios – afinal, ela era uma velha - mas a gravidade no tom de sua voz forçou-me a ficar sóbrio. Finalmente, Cila levantou seu rosto com um sorriso que poucas vezes eu vira naqueles últimos meses. Quando falou, sua voz soou forte e límpida, sem a rouquidão que eu havia acostumado a ouvir. Como uma antiga rainha que recobrasse sua realeza, ela indicou que eu partisse, que ela iria ponderar minhas palavras. Sorrindo, segurei novamente sua mão e a trouxe gentilmente até a boca, dando um suave beijo de despedida, agradecendo sua sincera amizade e confirmando que ali retornaria um dia para vê-la. Ao sair, ainda ouvi sua voz, soando mais como uma bênção do que como um desejo de despedida: “Buona ventura!”

Um comentário:

Cristiano Contreiras disse...

Alexandre, meu caro, parabéns pela proposta do seu espaço!

te sigo!